Boa noite
Já há muito que não venho para estes lados, porque a dor tirou-me a vontade. Como escrevi há uns meses, foi diagnosticado á minha mãe um tumor maligno no intestino ( adenocarcinoma ). Uma vez que são tumores silenciosos e a minha mãe era daquelas pessoas que nunca se queixava e detestava medicos, quando tivemos a confirmação do pior, soubemos também que já estava metastizado pelo figado e hipocondrio. E o inicio do mês de Fevereiro foi mesmo o inicio do maior pesadelo da minha vida. Depois da noticia e de muito chorar resolvi falar com a minha mãe. Nunca lhe escondi o que tinha mas ocultei sempre a gravidade da situação. Na realidade e apesar de sermos uma familia numerosa, apenas eu sabia tudo o que se passava. Consegui interná-la no hospital para fazer os exames necessários. Depois de varias reuniões da equipa medica, foi decidido a colocação de uma protese para alargar o intestino que estava sob obtusão para posteriormente se iniciar a quimioterapia e mais tarde, dependendo sempre do exito desta, retirar a parte do intestino afectada. Sabia que iria ser uma luta bastante dificil, onde as hipoteses de recuperação eram minimas ................. mas EXISTIAM. Após 1 mês no hospital, 3 tranfusões sangue e a colocação da protese, vieram ter com a minha mãe e informaram-na que como teve uma excelente recuperação, iria essa semana para casa e regressaria no sabado seguinte para a colocação do cateter por forma a se iniciar os tratamentos. Ela era uma pessoa pessimista por natureza e nunca na vida a vi tão determinada em vencer algo. Consciente da doença, falava dela com naturalidade e referia que era apenas e só mais uma batalha que tinha que enfrentar, como tantas outras por que passou. O meu filho de 15 meses ( na altura ) dava-lhe o animo que ela precisava. "O teu filho é a minha vida " dizia-me, ao que eu respondia, " eu sei e por isso mesmo tens que lutar. Vêm aí tempos dificeis mas tens que ser forte para o puderes ver crescer e ensiná-lo como tens feito até agora. " " Eu sei, eu vou vencer, podes ter a certeza". A semana que passou em casa foi terrivel. Nos 2 primeiros dias ainda correu bem, comia bem, não tinha dores, estava feliz. Tinha o netinho ao pé dela e ele dava-lhe beijinhos a cada minuto, fazia gracinhas, mimava-a. Depois vieram as dores, a falta de apetite, as insonias ..... teimava em não ir ao hospital porque faltavam apenas 2 dias para lá ir. E aguentou .... sabe Deus com que forças. E no sabado dia 12 Março ás 10 horas da manhã lá fomos nós. Mesmo com a intervenção marcada foi-nos dito que provavelmente não iriam colocar o cateter porque tudo dependia da afluencia externa ao serviço mas que aconselhavam a que ela ficasse para tratarem das dores porque o medico que lhe deu alta apenas receitou Ben-U-Ron ( ?????? ). Cerca das 15 horas fui receber noticias, pensando até que ainda não tinha ido para o bloco operatorio. Fiquei pois a saber que estava nesse preciso momento a colocar o cateter e disseram-me para voltar ás 22 horas para saber como tinha corrido. As horas pareciam não passar e dando-me conta que não tinha tomado a medicação para a tensão, dirigi-me ao hospital para tentar falar com o medico sobre isso. Eram 21 horas. Falei com o segurança que me mandou entrar para o corredor do SO. Encostei-me a uma parede pois estavam lá muitas macas do serviço de urgência. Quando olho para um dos lados vejo-a, deitada numa maca, a cabeça para trás sem almofada. Chamo por ela, uma, duas, e só á terceira vez olha para mim ..... sem me ver. O meu coração disparou. Fui ao pé dela e disse " Mãe sou eu, então estás aqui no corredor?" NADA, nem uma unica reacção. Insisti e lá veio a reacção " Oh filha pedi tanto para falar contigo. Então o menino? " E a conversa foi-se desenrolando. Quis saber porque não me reconheceu, se era algum efelto da anestesia. Disse-me que era falta dos oculos. Perguntei tudo, como se sentia, como tinha sido e ela explicou tudo. Anestesia local, não conseguiram colocar de um lado, tiveram que abrir do outro. No meio da conversa qual não é o meu espanto quando começa a destapar-se. Isto vindo de uma mulher que não gostava de se mostrar a ninguem e fazê-lo num sitio cheio de homens alarmou-me. Chamei a 1ª pessoa que por ali passou ( uma auxiliar ) dei-lhe conta dessa situação e do facto de não me ter reconhecido logo, expliquei que queria falar com quem de direito e saber o que se passava porque a minha mãe estava com comportamentos que eu não reconhecia. Expliquei ainda que dado ela estar a ouvir a conversa, se estivesse realmente bem, já me tinha repreendido porque não gostava que eu incomodasse ninguem. E a sra lá me disse que ela estava bem que até tinha comido a sopa sozinha, sem ajuda. A minha mãe respondeu -lhe " Comi mas vomitei. " Por muito que tenha insistido pouca importancia deram ás minhas preocupações. Entretanto ouvi a voz do medico dela e dirigi-me a ele, expus a situação, falei do medicamento em falta e fui praticamente corrida com um " é tudo do tumor". Não percebi mas também não era medica e não questionei mais. Voltei para junto dela e despedi-me, com a certeza que no dia seguinte a levaria para casa. Às 9 horas da manha telefonam do hospital a informarem que iria ter alta. Toda contente lá fui eu mais o meu filho e uma irmã dela. Deixei-os cá fora e entrei. Disseram para aguardar. E passou 1 hora. Lá insisti e então pediram para entrar e ajuda-la a vestir. Achei estranho. Até á data nunca precisou de qualquer ajuda. Entrei e o cenário que encontrei nunca mais o vou apagar da minha memoria. Os lençõis presos a fazerem um colecte forças á volta do tronco, os pés enfiados nas grades, os braços e mãos totalmente revirados, os olhos também revirados e um discurso sem nexo algum. Morri naquele momento. A luz ao fundo tunel apagou-se e ficou apenas escuridão. Onde estava a minha mãe???? A pessoa que eu tinha lá deixado no dia anterior???? Consciente, autonoma, orientada. O que estava diante de mim era um ser inerte, sem reacção. Tentei em vão puxar por ela, despertá-la mas nada. Pedi ajuda e explicações, gritei. Alguém tinha que me explicar o que se tinha passado. Aquela não era de todo a pessoa que eu horas antes tinha deixado naquele hospital. Lá veio uma enfermeira que me disse que ia falar com o medico e que realmente tinha achado estranho porque a minha mãe de manha não tinha colaborado nada. " Então achou estranho e não fez nada? Não reportou ao medico? E dão alta a uma pessoa neste estado?" Sai dali e deixei com ela uma prima minha que entretanto tinha chegado ao hospital. Fui levar o meu filho a casa e pelo caminho essa familiar telefona a chorar a dizer que tinham informado que ela ficava para observação e noticias só mesmo ás 15 horas. E assim foi. Às 15 horas lá entrei para a ver. Tudo na mesma mas já me respondia a algumas questões : quem eu era, como se chamava o meu filho, como se chamavam os meus irmãos, ao que ela respondia a tudo e bem. Às 22 horas regressamos todos aos hospital e a historia foi a mesma. Reconhecia algumas pessoas, outras já não. Quando insisti com ela diz-me " ai filha és tão chata". Ainda nos rimos. E essas foram as últimas palavras que ouvi da boca dela.
Do SO passou para a UIPA, e ninguém sabia do que se tratava. È do tumor, diziam, explicação que nunca aceitei, até que por fim lá disseram que tinha lesões cepticas que lhe provocaram lesões gravissimas no cerebro. Já consciente que poderia ser isso, afirmei : " bacteria hospitalar, certo?" Não responderam. Também não era preciso. Não sou medica mas também não sou estupida. E durante 17 dias, preparados para o pior, tentámos de todas as maneiras tirá-la daquele serviço onde só podia entrar 1 pessoa por dia durante 5 minutos. Nunca conseguimos, sempre com a explicação que ainda esperavam uma recuperação da parte dela. Mentiras e muita maldade. Sempre souberam qual seria o desfecho e privaram-nos da despedida. Só mesmo a bondade de algumas enfermeiras permitiu a alguns familiares ir visitá-la. Eu fui todos os dias, com muita fé que ela iria recuperar. Decidi não sofrer por antecipação. Levava gravadas as vozes dos netos dela, dos filhos, da nora, sobrinhas, de todos. beijava-a, dizia o tempo todo que a amava e pedia-lhe para voltar para nós, para casa. Na maquina que media os batimentos cardiacos via a reacção dela. Ela ouvia-me e isso dava-me ainda mais força e esperança. Pedi muito a Deus, fiz promessas, pedi para a deixarem viver mais anos, que mos tirassem a mim mas que não levassem a minha mãe. Mas no dia 28 Março, dia que o meu filho fez 16 meses, a minha mãe morreu. Em paz, disseram.
E já lá vão quase 3 meses. A dor e a saudade não passam, não diminuem com o tempo. Pelo contrário. Falo com ela todos os dias, mas parte-me o coração quando vejo o meu filho á procura dela pela casa ou quando a minha sobrinha de 5 anos me telefona e diz : " Madrinha podes dar-me o numero do Céu da avó Carminda para eu falar com ela?" ou então como hoje " Madrinha a avó Carminda? " " Amor a avó está no Céu? " " E quando é que ela vem ver a gente?" È nestes momentos que vou abaixo, que grito e me zango com Deus, me ajoelho e Lhe rogo para me acordar deste pesadelo. Eu quero a minha mãe, minha amiga e companheira de vida, de volta. Preciso do abraço dela, dos beijos, dos mimos.
Não é justo nem ter tido a oportunidade de lutar. Roubaram-lhe isso e nem uma explicação, uma palavra nos deram. Apenas uma certidão de obito. Causa da morte : neoplasia. È para rir.
A todos os que estão a enfrentar esta luta, sejam doentes ou familiares de doentes, CORAGEM E NÃO DESISTAM. Podem ter dias piores e vontade de abandonar tudo e todos mas não o façam porque o sol nem sempre brilha mas existe.
Partiste MÃE e contigo partiu também metade de mim. AMO-TE
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